Para Deus, é como perder um olho quando um dos seus piedosos morre.
(Sl 116:15)
Não faz muito tempo a COVID nos fez encarar de frente o problema da morte. Até sei que em outras épocas e culturas a morte pode ser encarada de formas distinta, mas entre nós...
De repente, se foram...
Tanta gente perto, conhecida, querida, amada, pais e filhos.
Os números no Brasil ultrapassaram a casa das sete centenas de milhares de óbitos.
O luto e a dor da perda então se mostraram tão presentes e cruéis como parece que nunca tínhamos experimentado – pelo menos em minha geração.
E entre tantos, ainda vimos partir servos leais cristãos que o vírus não poupou.
— Mas, como Deus deixou falecer os seus fiéis?
Então levei minha atenção ao texto sagrado em busca de respostas. Só ali o próprio Altíssimo poderia oferecer explicação para uma dor tão sem sentido!
A citação foi quase direta: recordo de ler em quase todo obituário cristão a citação do Sl 116:15 – e geralmente na versão mais tradicional de Almeida que diz ser preciosa à vista de SENHOR a morte dos seus santos. Como se a morte de um fiel cristão fosse algo que Deus valorizasse, e até gostasse!
— Será isso mesmo? Será que Deus tem prazer na morte de seus fiéis?
Vamos ler juntos o texto do Salmo para entendê-lo melhor.
Em primeiro lugar considere que esse verso é poesia, e da boa! Então ele precisa ser lido nessa perspectiva.
No Salmo 116 o salmista começa afirmando que ama o Senhor por que ele ouve a sua voz (verso 1) e também reconhece que somente o Senhor é misericordioso para livrar a sua alma aflita (verso 5). E se questiona como retribuir por bênçãos sem medida (verso 12).
Então, ele se dispõe a celebrar e cumprir seus votos (versos 13-14).
Mas tem um problema: a morte me envolveu com suas cordas (verso 3). Ora, se os mortos não cantam louvores ao Senhor (considere o Sl 115:17), como louvar a Deus no silêncio da sepultura?
Aqui entra o entendimento do verso 15. De maneira poética o salmista faz a exclamação: para Deus, perder um dos seus fiéis piedosos é como prejuízo (custa caro!) – seria como perder um olho!
É isso mesmo. Na compreensão poética do salmista, para Deus, quando um fiel morre, é como se ele perdesse um adorador valioso.
Bem, posso entender que a visão do salmista sobre o Deus eterno ainda era limitada, e que na eternidade também haverá louvor ao Criador (Apocalipse é cheio dessas citações). Mas, ele está salmodiando a certeza que, desse lado da existência, a morte de um fiel é uma perda lastimável – e o Senhor não fica indiferente a isso.
Ora, sobre a morte dos santos, ainda é bom citar o texto da profecia de Ezequiel onde Deus diz, literalmente: Eu não tenho prazer na morte de ninguém (Ez 38:32).
Ou seja, numa compreensão bíblica, não faz sentido Deus ter interesse na morte de seus servos, nem que isso lhe seja computado como ganho. Pelo contrário, Deus nos criou para a vida e para isso foi que ele veio: para nos dar vida em abundância (estou citando Jo 10:10).
E mais. Se por um lado Deus é o autor e doador da vida (vá a Gn 2:7), por outro, a morte é resultado exclusivo do pecado (considere Rm 6:23). Como ele teria qualquer satisfação no resultado de algo que o aviltou e separou de si mesmo suas criaturas?
Eu creio num Deus que sofreu e chorou cada luto do COVID junto àqueles que sofreram como uma perda irreparável. Ele recolheu tais lágrimas no seu odre (poesia maravilhosa do Sl 56:8) e os convidou de maneira amável a se acalentar em seu descanso consolador – mesmo em meio a dor – confiando que ele continua sendo bom (termino voltando ao Sl 116:7).
#1. A versão do Sl 116:15 que está lá no cabeçalho desse texto é minha, feita a partir do hebraico (sem compromisso linguístico), apenas compreendendo o seu sentido poético.
#2. Para dar base a essa reflexão, eu preparei uma Exegese rápida do Sl 116:15 que postei e pode ser acessada nesse link.